As imunidades tributárias, tal qual a prevista no artigo 195, §7º da Constituição, possuem natureza jurídica semelhante às regras que outorgam competência tributária à União, estados e municípios. A diferença é que, enquanto as normas de competência autorizam a cobrança de tributos, as regras de imunidade têm a finalidade oposta: a de retirar e/ou limitar o poder de o Estado tributar. É por isso, inclusive, que parte da doutrina convencionou chamar as imunidades tributárias de regras de incompetência tributária.
É, também, em razão de as imunidades serem verdadeiras limitações ao poder de tributar que o Supremo Tribunal Federal, em mais de uma oportunidade, se manifestou no sentido de que este instituto deve ter os seus limites materiais regulamentados por Lei Complementar. A opção do constituinte é acertada, sobretudo porque não se pode deixar para a pessoa jurídica que irá instituir o tributo a tarefa de impor requisitos para a fruição da própria imunidade tributária. Do contrário, seria melhor falar em isenção do que em imunidade.
Essa conclusão, contudo, não afasta o seguinte questionamento: há alguma matéria, relacionada à imunidade do artigo 195, §7º da Constituição, que pode ser regulamentada por lei ordinária?
A resposta para essa pergunta parece nos ter sido dada no julgamento do RE nº 566.622/RS e da ADI nº 4.480/DF. Naquelas ocasiões o Supremo esclareceu que cabe à Lei Complementar — e somente a ela — definir as condições e requisitos materiais para a fruição da imunidade tributária. E que, até a edição da Lei Complementar nº 187/2021, os requisitos a serem observados eram aqueles tratados no artigo 14 do CTN.
No entanto, ao julgar os embargos de declaração, opostos pela União Federal no RE nº 566.622/RS, a Suprema Corte também ressalvou que os “aspectos procedimentais referentes à certificação, fiscalização e controle administrativo são passíveis de definição em lei ordinária”. À época, o Supremo Tribunal Federal demonstrou uma preocupação (legítima) com possíveis fraudes, pela falta de leis ordinárias que pudessem regular a fiscalização das entidades beneficentes e de assistência social.
Por isso, a maioria do plenário da Suprema Corte seguiu o entendimento da ministra Rosa Weber, no sentido de que é “legítima a atuação do legislador ordinário, no trato de questões procedimentais, desde que [isso] não interfira com a própria caracterização da imunidade”. Com efeito, ao final daquele julgamento ficou declarada a constitucionalidade do próprio Cebas e do artigo 55, inciso II da Lei nº 8.212/1991 (em sua redação original e com posteriores modificações).
Faltou, no entanto, que o STF explicasse melhor qual é a consequência de descumprir a regra trazida naquele dispositivo. Ou seja, caso o contribuinte não possua, ou não apresente o Cebas à Fiscalização, ele deverá ser penalizado com a cassação de sua imunidade tributária, ou, por outro lado, deverá ser penalizado apenas pelo descumprimento da obrigação acessória que foi declarada constitucional?
Essa distinção, embora sútil, faz toda a diferença na vida prática dos contribuintes. Afinal, no primeiro caso a União poderia exigir das entidades o pagamento de todos os tributos [4] supostamente atrasados, acrescidos de multa de ofício; enquanto na segunda hipótese o Fisco poderia exigir, apenas, o pagamento de uma multa isolada, devida pelo descumprimento do dever instrumental de manter em dia o Cebas.
Em que pese a solução para esse problema não tenha sido dada expressamente, no julgamento dos Edcl’s no RE nº 566.622/RS, a leitura atenta do voto da ministra Rosa Weber indica a conclusão de que a não apresentação do Cebas deve conduzir, apenas, à aplicação de uma multa regulamentar, pelo descumprimento de obrigação acessória. Afinal, se a apresentação do Cebas passasse a ser requisito para a fruição da imunidade tributária, teríamos uma lei ordinária interferindo diretamente “com a própria caracterização da imunidade” — o que foi rechaçado expressamente pelo Supremo.
Ademais, a evolução da jurisprudência da Suprema Corte corrobora que o Cebas — ao menos até a edição da Lei Complementar nº 187/2021 — possuía natureza meramente declaratória. Isso fica claro, inclusive, no julgamento da ADI nº 4.480/DF, em que o STF analisou diversas disposições da Lei nº 12.101/2009, que substituiu o artigo 55, II da Lei nº 8.212/1991.
Naquele caso, o Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade do artigo 31, da Lei nº 12.101/2009 e do §1º do artigo 32 da mesma lei. O primeiro dispositivo estabelecia que a imunidade somente poderia ser usufruída após a publicação do ato administrativo que concedesse o Cebas. Já o segundo, dispunha que a imunidade estaria automaticamente suspensa, caso o contribuinte deixasse de cumprir com o requisito formal de manter em dia o referido certificado.
Ao analisar o artigo 31 da Lei nº 12.101/2009, o relator da ADI nº 4.480/DF, ministro Gilmar Mendes, declarou a sua inconstitucionalidade formal, sob o fundamento de que a norma criou um novo requisito/condição, não previsto em Lei Complementar, para a fruição da imunidade do artigo 195, §7º da Constituição. Destacou-se, ainda, que a imunidade deveria produzir efeitos assim que o contribuinte preenchesse os requisitos previstos na legislação competente (à época, o artigo 14 do CTN):
“Nesse contexto, entendo que o exercício da imunidade deve ter início assim que os requisitos exigidos pela lei complementar forem atendidos.
Colho, a propósito, da manifestação da Procuradoria-Geral da República que esse dispositivo, ‘ao estabelecer o termo inicial para que as entidades possam exercer o direito à imunidade da contribuição para a seguridade social, trata de tema relativo aos limites da garantia constitucional, adentrando matéria submetida à reserva de lei complementar’ (eDOC. 13, p. 14).
Assim, entendo formalmente inconstitucional o artigo 31 da Lei 12.101/2009″.
Por sua vez, ao analisar o §1º do artigo 32, da Lei nº 12.101/2009, a Suprema Corte concluiu pela inconstitucionalidade material daquele dispositivo, já que a suspensão dos efeitos da imunidade tributária não pode ser declarada automaticamente, em caso de irregularidades com o Cebas. De fato, a Administração Pública deve instaurar um contencioso administrativo específico, em que seja oportunizado ao contribuinte demonstrar que ele ainda cumpre com os requisitos materiais, previstos em lei complementar, para gozar da imunidade:
“Por fim, entendo que merece prosperar o argumento de inconstitucionalidade material do §1º do artigo 32 da Lei 12.101/2009, in verbis:
‘§1º Considerar-se-á automaticamente suspenso o direito à isenção das contribuições referidas no artigo 31 durante o período em que se constatar o descumprimento de requisito na forma deste artigo, devendo o lançamento correspondente ter como termo inicial a data da ocorrência da infração que lhe deu causa’.
O referido dispositivo, a meu ver, encontra-se em clara afronta ao inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal, uma vez que determina a ‘suspensão automática” do direito à isenção, sem a garantia do contraditório e da ampla defesa, conforme assegurado no citado dispositivo constitucional. Nesses termos, entendo estar eivado de inconstitucionalidade material o artigo 32, §1º, da Lei 12.101/2009′”.
A leitura atenta dessas conclusões, que foram seguidas pelo plenário do Supremo, indica que, até a edição da Lei Complementar n.º 187/2021, o Cebas sempre possuiu natureza declaratória, na medida em que facilitava o trabalho da fiscalização, impondo aos contribuintes demonstrar, previamente a qualquer ação fiscal, que cumpriam todos os requisitos materiais para usufruir da imunidade do artigo 195, § 7º da Constituição.
Esse documento, no entanto, nunca foi o responsável por constituir o direito à imunidade tributária em si. É por isso, inclusive, que o STF enfatizou, na ADI nº 4.480/DF, que 1) a legislação ordinária não poderia estabelecer que a imunidade tributária somente produziria efeitos após a publicação do ato que concedesse o Cebas, e que 2) a irregularidade desse registro suspende automaticamente os efeitos da imunidade.
Esse, portanto, é o entendimento que nos parece ser mais coerente com os posicionamentos que foram exarados, nos últimos anos, pelo plenário do STF.
A despeito disso, não se pode deixar de ressaltar que, em algumas situações, os órgãos fracionários da Suprema Corte vêm vacilando na aplicação dos precedentes firmados em plenário. Cite-se, como exemplo, o julgamento do segundo Edcl’s no Ag. Reg. no RE nº 364.602/RS , em que a Primeira Turma do STF concluiu que embora o contribuinte cumpra com o disposto no art. 14 do CTN, a não apresentação do Cebas poderia ser causa o bastante para suspender os efeitos da sua imunidade tributária.
O mesmo ocorreu no julgamento do Ag Reg. nos Edcl’s no RE nº 1.316.686/SC, em que a Segunda Turma do STF reformou o acórdão de origem que reconheceu que os requisitos para a “fruição da imunidade tributária de que trata o §7° do artigo 195 da Constituição da República, (…) devem estar estabelecidos em lei complementar”, sob o argumento de que o STF já “decidiu pela constitucionalidade da exigência do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), por meio de lei ordinária”.
Vale notar que todas essas contradições na jurisprudência do Supremo poderiam ter sido evitadas se aquela Corte tivesse analisado com maior profundidade os segundos embargos de declaração, que foram opostos no RE nº 566.622/RS.
É que, após o provimento dos aclaratórios da União, o contribuinte apresentou um novo recurso, requerendo o esclarecimento de dois pontos. O primeiro diz respeito à natureza do Cebas que à época era indiscutivelmente declaratória. E, o segundo, diz respeito à possibilidade de os contribuintes demonstrarem, no curso de um processo administrativo ou judicial, que cumprem os requisitos previstos na legislação complementar, e que, por essa razão, não poderiam ter o seu direito à imunidade negado, com base na exclusiva falta do Cebas.
Como se vê, esses dois questionamentos foram indiretamente respondidos pela ministra Rosa Weber, no julgamento dos primeiros Edcl’s no RE nº 566.622/RS, em que ela afirmou que a lei ordinária não pode criar requisitos para a “caracterização da imunidade”. E, mais tarde, eles foram diretamente respondidos pelo plenário do STF que, ao julgar a ADI nº 4.480/DF, afirmou que a imunidade tributária passa a produzir efeitos no momento em que o contribuinte preenche os requisitos previstos na legislação complementar competente, independentemente de regularidade do Cebas.
Mesmo que já existissem respostas à essas questões, aquela Corte perdeu a oportunidade de colocar uma pá de cal sobre o assunto, uniformizando sua jurisprudência. Optou-se por rejeitar, de forma genérica, os aclaratórios opostos pelo contribuinte no RE nº 566.622/RS, sob o argumento de que esses pontos já haviam sido respondidos nos julgamentos anteriores daquele leading case. Com isso, permanece o cenário de instabilidade jurídica, em que os órgãos fracionários da Suprema Corte nem sempre seguem, de forma adequada, o entendimento que foi firmado em plenário, sobre o Cebas não ser condição para a fruição da imunidade do artigo 195, §7º da Constituição.
Respondendo, então, à pergunta que foi formulada no início deste artigo: o Supremo não disse que a falta de apresentação do Cebas basta para impedir a imunidade do artigo 195, §7º da Constituição. Pelo contrário, o plenário daquela Corte afirmou que esse registro, embora constitucional e legítimo, possui natureza meramente declaratória.
A pergunta que fica é: será que o Supremo irá “ouvir” a jurisprudência do seu próprio plenário, uniformizando o entendimento de seus órgãos fracionários no sentido de que, até a Lei Complementar nº 187/2021, o Cebas não é responsável por constituir o direito à imunidade tributária?
Fonte: Conjur, acesso em 19/05/22